“De repente ele foi ficando estranho”, “De repente ela começou a me evitar”. ‘De repente’ é uma locução que traduz surpresa, coisa inesperada, uma expressão que a gente usa quando é pega sem aviso prévio. Infelizmente, das mais usadas quando o assunto é divórcio. Mesmo os divórcios chamados de “grisalhos”, aqueles que encerram casamentos de pessoas com mais de 50 anos.
Um amigo me disse que foi viajar e na volta encontrou um bilhete onde a mulher dizia: muitas coisas aconteceram, para mim não dá mais, estou indo embora. Na mesma hora ele pensou numa terceira pessoa, um caso de infidelidade. Pegou o celular e ligou na esperança de que ela desse alguma justificativa melhor do que o ‘não dá mais’. Foram dias até que a mulher respondesse à ligação e, enfim, aceitasse um encontro para conversar. Ela disse ao meu amigo que estava exausta de tantas discussões, de sempre concordar com tudo para evitar brigas, de fazer sexo mecânico, de não ter suas necessidades contempladas, de não ser tratada com carinho, de não ter seu trabalho doméstico reconhecido. Não. Não tinha outro na jogada mas a lista de queixas era interminável e deixou o meu amigo perplexo. Dias depois, ele me disse que jamais poderia imaginar tamanha insatisfação porque a mulher simplesmente não dava sinais de tanta contrariedade.
Contrariedade? Seria, mesmo, contrariedade ou um gigantesco desprazer por continuar vivendo ao lado de quem simplesmente ignorava a parceira de cama, mesa, banho e vida? Ela não dava sinais ou ele não via os sinais, recostado no comodismo tão comum nos casamentos longevos. Por óbvio não continuei a conversa. A dor pela qual meu amigo passava já era grande demais; não seria eu a cavar o buraco ainda mais fundo.
Na atualidade, 25% de todos os divórcios no país são de pessoas com mais de 50 anos
No último levantamento do IBGE, um dado chamou à atenção: 25% de todos os divórcios no país são de pessoas com mais de 50 anos. Até 2010, menos de 10% dos divórcios foram de pessoas com mais de 50 anos. O que aconteceu nesse intervalo de uma geração? Talvez esse seja um lado muito positivo de se falar tanto sobre envelhecimento, longevidade e maturidade como temos feito. Nos demos conta de que a velhice é o tempo mais longo na trajetória de uma existência desejável. A infância e a adolescência juntas duram só duas décadas. Daí vem a vida adulta que dura mais ou menos três décadas. Chegamos, então, à maturidade (ou velhice) que vai durar o resto da vida e que precisa ser boa. Se na vida adulta a gente alimenta sonhos e fantasias, na maturidade conquistamos o discernimento para entender quando vale à pena investir e quando simplesmente não dá mais, como aconteceu com a mulher do meu amigo.
Mas se é na maturidade que estamos mais conscientes das nossas possibilidades amorosas, por que somos pegos de surpresa quando um parceiro diz: não dá mais, vou embora, me apaixonei por outra pessoa, cansei de você ou simplesmente quero viver sozinho (às vezes, sem demonstrar responsabilidade afetiva com quem ficou para trás)?
É preciso prestar atenção aos sinais que o relacionamento dispara ao longo do tempo
A resposta que eu consigo encontrar para esse susto é a nossa falta de atenção para os sinais diante de nós. Às vezes, eles estão ali por décadas. Mas, distraídos, esticamos a corda de um casamento que agoniza em silêncio. Estamos passando pela vida distraídos de nós mesmos e do outro. Nos ocupamos de tanta coisa que parece importante e inadiável que colocamos o relacionamento numa espécie de piloto automático sem necessidade de manutenção. Só que o risco de esticar o elástico de uma existência a dois que já esgarçou é esse mesmo; um dos dois cansa e desiste. Cansa e vai investir em um território que avista como mais promissor. Cansa e vai se isolar em busca de paz. Quem é o vilão? Esse que desistiu da relação de muitos anos ou o resiliente que engoliu os incômodos calado? Quem seria o herói? Aquele que tomou coragem e partiu ou aquele que abriu o jogo numa tentativa derradeira de salvar a relação? Há muitas perspectivas para enxergar a reação dos envolvidos; em geral, escolhemos aquela que nos dá conforto no momento da separação o que é inteiramente compreensível.
A psicóloga e terapeuta de casais Marina Simas de Lima, co-fundadora do Instituto do Casal, diz que a conexão verdadeira com um parceiro só acontece quando conseguimos colocar interesses e necessidades do casal na frente dos interesses individuais. Difícil discordar dessa premissa, até porque se cada um priorizar a si mesmo em detrimento do outro, não tem acordo que sobreviva. Mas fica difícil saber por qual caminho seguir quando o parceiro se fecha para a conversa, quando a preguiça já tomou conta da relação ou quando o amor se esvaneceu irrecuperavelmente.
Saber ouvir o outro é um cuidado fundamental nas relações
Nos últimos dois anos, venho me dedicando aos estudos sobre escuta ativa, método de comunicação e resolução de conflitos desenvolvido pelo psicólogo norte-americano Thomas Gordon e largamente utilizado em empresas, tribunais, escolas e até consultórios. As teorias de Gordon não são exatamente o pulo do gato, mas se valem de um invejável bom senso. O primeiro passo é ouvir o outro sem interromper e sem julgar. Para fazer isso, precisa ter foco e atenção no momento presente (artigos de luxo em tempos de alertas, notificações e mensagens nas redes sociais). Na lista da escuta ativa do psicólogo Thomas Gordon também aparecem a importância de fazer perguntas abertamente e o esforço real para se colocar no lugar do outro, a tal empatia.
Depois do luto pelo divórcio, vem o frescor do recomeço
Teorias na mesa, caminhos para evitar uma separação, mas não deu certo e chegamos a ele, o divórcio. Com ou sem susto, surpresos ou precavidos sobre o que poderia acontecer, não importa; a história de uma dupla ficou no passado e ambos seguirão em carreira solo noutros enredos que não nos cabem mais. Revisitar o casamento e tentar encontrar os pontos que nos levaram ao fracasso é uma etapa importante, mas com prazo para começar e acabar. Como nos processos de luto, a hora do basta define um novo começo. Não interessa se teve um culpado, um desatento, um mau ouvinte, um desleixado ou um traidor porque aquela história não existe mais. O que temos é o daqui para frente, um tempo em que precisamos estar inteiros, seguros e minimamente fortes para encarar a reconstrução. Que a história seja passada a limpo e o trabalho seja dado como concluído por duas razões: para dor não se eternizar e para que a história não se repita.
Estar num casamento é encontrar parceria, conexão, intimidade, graça, prazer e, sim, algumas contrariedades, porque vida é perrengue um dia depois do outro. O divórcio é um daqueles soluços incômodos que nos tiram o ar e mais nada. A gente respira fundo, olha para dentro, depois olha para fora e percebe que dá para começar uma nova temporada.