João Nery faleceu, aos 68 anos, dois dias após escrever a última página de seu livro “Velhice Transviada”, em 2018. Foi um importante ativista por direitos humanos e o primeiro brasileiro reconhecidamente a realizar uma cirurgia de redesignação sexual em 1977. Inspirou e batalhou para que o envelhecimento fosse um direito de todas as pessoas. Entretanto, ainda há muito pelo que pleitear.
Infelizmente, a invisibilidade das velhices LGBTQIA+ é uma realidade. Sofrem ao resistir à hetero-cis-normatividade e ao enfrentar o estigma do envelhecimento em uma sociedade gerontofóbica, a qual valoriza aspectos relacionados ao corpo jovem e à juventude. Por isso, alguns estudiosos já relatam que a carga de discriminação com a qual convivem é no mínimo dupla, sem contar outras camadas de opressão baseadas no racismo e na exclusão social.
Intolerância que fere fisicamente, psicologicamente, e que também mata, visto que muitas pessoas da comunidade LGBTQIA+, especialmente mulheres trans e travestis, morrem violentamente antes de chegarem à velhice. Já os que conseguem ultrapassar a marca dos 50 anos precisam enfrentar as diversas faces da violência contra a pessoa idosa: física, psicológica, sexual, financeira, negligência ou institucional. O que se especula é que estariam sob um maior risco de ocorrência desses fenômenos e ao mesmo tempo com as menores chances de denunciarem para as autoridades sanitárias ou policiais.
Além disso, todas essas construções socioculturais apresentam consequências sérias no acesso, na promoção da saúde, no acompanhamento de doenças complexas e no fim de suas vidas, prejudicando possibilidades de alcançarem um envelhecimento ativo e bem-sucedido.
Nesse contexto, algumas pessoas defendem que esse debate não deveria ser realizado, uma vez que isso poderia aumentar o preconceito ou porque a sociedade não estaria preparada para tal. Porém, durante toda a sua vida João Nery evidenciou o contrário. Deu exemplos e voz a pessoas brutalmente silenciadas e não teve medo de nomear diferenças e de denunciar injustiças, a fim de reduzir as desigualdades sociais que perversamente marcam os locais que ocupamos na sociedade.
Por uma sociedade mais justa e cidadã
Ao mesmo tempo, se você é uma pessoa idosa ou tem familiares idosos, é impossível que não se solidarize contra a discriminação etária, também conhecida como idadismo. E é aí que gostaria de discutir outra questão fundamental: não basta batalharmos apenas contra esse preconceito, sem acolher todos outros grupos que almejam uma sociedade mais justa e cidadã.
É impossível dissociar a gênese ideológica do idadismo de outras discriminações, como o racismo, o capacitismo, o elitismo, a misoginia e também a LGBTfobia. São todas formas construídas de desvalorizar corpos através de uma hierarquia socialmente criada, cujas consequências resultam em grande sofrimento biopsicossocial.
Novamente, durante minha trajetória recente alguns me questionam o porquê de falar em velhices LGBTQIA+. Eu respondo com a mesma retórica: Por que não falar? E a quem interessa manter tal assunto na invisibilidade e no esquecimento?
Como geriatra, respondo também que a memória não é inocente. É exercitada como nossos músculos. Pensar no passado ajuda a entender o presente e no presente encontramos maneiras de modificar o futuro. Assim, trago a história de João Nery para que ele seja eterno, e que sua lembrança possibilite nosso nascimento como gente, independentemente dos rótulos recebidos por aí.